Em “A ética objetivista”, artigo presente no livro “A virtude do egoísmo”, Ayn Rand define os princípios norteadores do objetivismo, uma corrente filosófica que trata da ética e da moral. É o objetivismo uma filosofia de bases sólidas? Veremos que não. O objetivo geral de nosso texto é a análise crítica do artigo “A ética objetivista” e da “Introdução” do livro “A virtude do egoísmo”. Nossa crítica será orientada por dois critérios: metodológicos e conceituais. Em ambos os critérios, Rand deixa muito espaço para críticas, especialmente pelo fato de que ela não faz qualquer pesquisa hermenêutica sobre o que seja “egoísmo”. Essa é, precisamente, a nossa primeira crítica.
Crítica à metodologia
Ausência de pesquisa hermenêutica
O interesse inicial de Ayn Rand é a reabilitação positiva da palavra “egoísmo”. Vejamos como ela se posiciona:
“No uso popular, a palavra “egoísmo” é um sinônimo de maldade; a imagem que invoca é a de um brutamontes homicida que pisa sobre pilhas de cadáveres para alcançar seu próprio objetivo, que não se importa com nenhum ser vivo e persegue apenas a recompensa de caprichos inconsequentes do momento imediato. Porém, o significado exato e a definição do dicionário para a palavra “egoísmo” é: preocupação com nossos próprios interesses. Este conceito não inclui avaliação moral; não nos diz se a preocupação com os nossos próprios interesses é boa ou má, nem nos diz o que constituem os interesses reais do homem. É tarefa da ética responder a tais questões. A ética do altruísmo criou a imagem do brutamontes, como sua resposta, a fim de fazer os homens aceitarem dois princípios desumanos: (a) que qualquer preocupação com nossos próprios interesses é nociva, não importando o que estes interesses possam representar, e (b) que as atividades do brutamontes são, na verdade, a favor dos nossos próprios interesses (que o altruísmo impõe ao homem renunciar pelo bem de seus vizinhos).” (RAND, 1991, p. 24)
Vamos por partes. Em primeiro lugar, Rand contrapõe o sentido popular ao sentido de dicionário da palavra “egoísmo”. Aqui começa nossa primeira decepção. Que dicionário é esse? De onde ela pegou esse sentido? Ao dizer de modo amplo “a definição do dicionário” ela acaba se comprometendo, pois podemos usar qualquer dicionário como base. Para isso, fazendo o trabalho que Rand não fez, recorri aos dicionários mais próximos. Segundo o Priberam, egoísmo é o “amor exclusivo à pessoa e aos interesses próprios”. Segundo o Aulete, é a “dedicação excessiva que uma pessoa tem por si própria, esquecendo-se de considerar as necessidades e o bem dos outros”. Segundo a Infopédia, é a “preocupação exclusiva consigo e com os seus próprios interesses”. Para sair do português, vejamos o que diz o Collins: “concern for one’s own interests and welfare”. Ou seja: “preocupação com os próprios interesses e bem-estar”. Há também uma outra definição no Collins: “the tendency to be self-centered, or to consider only oneself and one’s own interests; selfshness”. Ou seja: “tendência em ser egocêntrico, ou de considerar apenas a si mesmo e seus próprios interesses; egoísmo”.
O que há de comum nessas definições, com exceção da primeira do Collins, é a preocupação exclusiva com os próprios interesses. Ou seja, o egoísta não se preocupa com os interesses dos outros, posto que se preocupa exclusivamente com os seus. A primeira definição do Collins vai ao encontro com a definição de Rand, mas isso não importa. O que fica demonstrado é: Rand não elege um dicionário e não faz qualquer pesquisa hermenêutica sobre o significado de “egoísmo”, o que ocorre é simplesmente uma colocação afoita e desprovida de referências, o que acaba permitindo o nosso uso indefinido de dicionários, causando conflito entre os significados. Um outro problema é que o sentido popular e o sentido de dicionário acabam se confundindo, ao contrário do que a autora pensa.
Como um novo leitor de Rand, esperava um cuidado maior da pensadora, já que há tanta admiração por sua figura e por seus pensamentos, especialmente por aqueles que se intitulam direitistas e guardiões do liberalismo. Esperava a cautela de um John Locke, de um John Rawls, mas não foi o que encontrei. Acabei me deparando com um texto jornalístico, de estilo panfletário, sem aquele rigor marcante que encontramos nos melhores filósofos.
Para dar um exemplo hermenêutico de excelência, lembro de Gadamer e o seu homônimo “Verdade e método”. Lá, Gadamer busca reabilitar o sentido velado da palavra “preconceito”, que foi enviesado pelos ditames do iluminismo. Gadamer faz uma verdadeira arqueologia para remover toda a terra que acabou encobrindo o sentido da palavra, e faz isso por meio de uma análise do “esclarecimento” e das máximas do iluminismo. Em Rand não há análise de qualquer ética precedente, não há nenhum exercício hermenêutico, ela simplesmente faz julgamentos sem antes alicerçar a sua estrutura filosófica.
Em segundo lugar, Rand condena o altruísmo, novamente, sem qualquer análise sobre o que seja. Dessa vez, sequer coloca “a definição do dicionário” para o termo. Ela simplesmente assume que o altruísmo é o culpado de acharmos que a preocupação com nossos próprios interesses é algo de nocivo, necessariamente. De um lado, o egoísmo que preserva o interesse próprio, do outro, o altruísmo que sacrifica o interesse próprio. É tudo muito maniqueísta. Não há uma análise do porquê o altruísmo seria a corrente que, necessariamente, sacrifica o interesse próprio em favor do de um outro. Rand não analisa Platão, Aristóteles, Descartes, Hobbes, Espinosa, Locke, Kant, Mill, simplesmente se coloca como a mensageira de uma grande novidade, de um novo início radical para a ética. Tudo bem, é um trabalho possível, a exemplo do que fizeram Descartes e Husserl com a metafísica, suspendendo todas as filosofias dadas até então para se estruturarem na percepção das essências. Rand, porém, fracassa em seu projeto, pois sequer a sua base é bem estruturada. Ela parte do princípio que só o egoísmo possibilita o autointeresse e, para isso, não dá argumentos suficientes. Por que só o egoísmo possibilitaria o autointeresse? Por que o altruísmo elimina, necessariamente, o autointeresse? E, não menos importante, por que Rand elimina a exclusividade que é própria do egoísmo?
Em grego antigo, o correspondente de “egoísmo” é “ιδιοτέλεια”. A sua raiz é “ἰδιότης”, que origina a palavra “idiota”. Quem eram os idiotas para os gregos? Aqueles que não queriam viver em comunidade, que eram indiferentes ou contra a pólis. Na antiguidade, ou se vivia na barbárie ou em comunidade. O idiota era aquele que abdicava de participar na pólis, que assumia a peculiaridade de preferir a barbárie ou de ser simplesmente inerte. Nesse exercício hermenêutico, o egoísmo, a “ιδιοτέλεια”, é uma característica própria do idiota, daquele que não se preocupa com sua comunidade, com seus colegas. Indo à raiz do “egoísmo” encontramos com mais propriedade a exclusividade que é própria do egoísta, isto é, ele se preocupa apenas com os próprios interesses, passando até mesmo por cima da estrutura da comunidade, da pólis. Para ele, melhor seria a barbárie ou a ausência de qualquer participação na pólis.
Quando Rand diz que o sentido popular do egoísmo evoca a imagem de um brutamontes ela não está errada, de fato, há essa concepção no imaginário popular, de que o egoísta é aquele que passa por cima dos outros para conquistar o que precisa. Esse sentido também é, no entanto, o sentido de dicionário por excelência – o egoísta é um idiota, aquele que passa por cima da pólis, da comunidade, ou que simplesmente não se importa com o seu rumo. A sua corrente de pensamento é a “ιδιοτέλεια”, a “idiotéleia”.
Do lado oposto, temos a “ανιδιοτέλεια”, isto é, o “não idiota”, o “não egoísta”. O não idiota é aquele que se preocupa com a pólis, que busca mantê-la, repará-la, que busca ser um contribuinte na comunidade. “ανιδιοτέλεια” é também a palavra para “altruísmo”. Ou seja, altruísta é aquele que visa o bem da pólis e de seus cidadãos, seus semelhantes. Não é aquele que sacrifica o seu autointeresse para beneficiar o vizinho, mas aquele que procura o bem da comunidade, a sua sustentação, sua perseverança e resiliência diante da barbárie, da guerra. Sim, o altruísta é um preocupado com os outros. Com isso, não abre mão de seus próprios interesses, mas busca o equilíbrio entre aquilo que pretende e aquilo que a comunidade pretende. O altruísta pode aplicar a justa medida, o equilíbrio entre decisões. Já o egoísta não procura equilíbrio algum, pois só existe ele e as suas preocupações internas. Uma coisa é focar em seus próprios interesses, se colocar como prioridade, outra coisa é passar por cima dos interesses da comunidade e incentivar a barbárie.
A tentativa de reabilitação do “egoísmo” como simplesmente “preocupação com nossos próprios interesses” é insuficiente, para não dizer que é mal feita. Sua maior referência é “o dicionário”, que pode ser qualquer um. Rand sequer sonha em dialogar com outras éticas ou em justificar o porquê de que devemos reiniciar a ética e montar as suas bases. Todo o seu texto se estrutura na seguinte frase:
“O altruísmo declara que qualquer ação praticada em benefício dos outros é boa, e qualquer ação praticada em nosso próprio benefício é má”. (RAND, 1991, p. 25)
Novamente, ela não diz quando e onde isso foi declarado. Creio que ela se refira ao cristianismo e à moral do “amai ao próximo como a si mesmo”. Se assim for, ela acaba trocando a máxima por “sacrificai a si mesmo pelo próximo”. Essa é a compreensão de Rand, que até poderia ser legítima, mas ela simplesmente não fundamenta a sua crítica. Ao contrário, articula afirmações fáceis e sedutoras ao ignorante em filosofia, que acaba abraçando os seus apontamentos infundados e afoitos. Uma afirmação tão categórica sobre o que seja o altruísmo deveria ter uma análise prévia, posto que a ética é um assunto milenar, mas não, Rand prefere atirar para qualquer lado.
Tendo a base mal formada, não podemos esperar grandes coisas do que se segue. De fato, são afirmações assustadoras. Vejamos:
“Daí a imoralidade assustadora, a injustiça crônica, os grotescos padrões duplos, os conflitos e as contradições insolúveis que têm caracterizado os relacionamentos humanos e as sociedades humanas através da história, sob todas as variantes da ética altruísta”. (RAND, 1991, p. 25)
Quer dizer, o altruísmo é o culpado por toda imoralidade, por todos os conflitos e contradições insolúveis nas sociedades humanas através da história. Quanto exagero, não? Rand parte do pressuposto, como vimos, de que o altruísmo é uma ética unilateral que simplesmente aniquila o autointeresse, daí, diz que só o egoísmo preza pelo autointeresse, o que é um absurdo. O altruísmo, a “ανιδιοτέλεια” preza pelo bem-estar da comunidade, pois é do interesse próprio dos cidadãos a manutenção da vida na pólis, em comunidade. Não há qualquer contradição no altruísta se preocupar com os próprios interesses, mas ele busca o equilíbrio entre suas necessidades internas e as necessidades externas da comunidade, ao passo que o egoísta/idiota se preocupa exclusivamente com os interesses internos. A insistência de Ayn Rand em dizer que egoísta é simplesmente aquele se preocupa consigo mesmo é um problema de fundamentação, ela passa por cima tanto do sentido popular quanto do sentido de dicionário e, mais importante, passa por cima do sentido filosófico construído ao longo dos séculos. Rand, em sua falta de cuidado, enaltece o maniqueísmo: de um lado o herói, o egoísmo, do outro lado, o vilão, o altruísmo, o culpado de toda imoralidade existente na história. Seu texto acaba encantando a fantasia leviana dos seres humanos de combater a vilania por meio do heroísmo, jogando a culpa de todos os males do mundo em um vilão único: o altruísmo.
Rand persiste em seu delírio:
“Dado que a natureza não provê o homem com uma forma automática de sobrevivência, dado que ele tem de sustentar sua vida através de seu próprio esforço, a doutrina que diz que a preocupação com nossos próprios interesses é nociva significa, consequentemente, que o desejo de viver do homem é nocivo – que a vida do homem, como tal, é nociva. Nenhuma doutrina poderia ser mais nociva do que esta”. (RAND, 1991, p. 26-27)
Como podemos ver, todas as suas justificativas caem por terra, pois mais uma vez ela se estrutura na noção de que “a doutrina”, o altruísmo, prega que a preocupação com nossos próprios interesses é algo de nocivo. De repente essa noção realmente seja a visão de algum filósofo isolado que escreveu sobre o altruísmo (provavelmente Auguste Comte, apesar de ele não definir a preocupação com os próprios interesses como algo de nocivo), mas Rand simplesmente ataca o conceito em geral, e sem fazer qualquer exercício hermenêutico – um suicídio filosófico. Se o que Rand diz fosse verdade, os cidadãos da pólis se suicidariam em prol dos outros, pois quanto menos pessoas existem, mais recursos ficam disponíveis. O altruísta se preocupa com os próprios interesses, a exemplo de quando vai à guerra para defender sua pátria. Ele vai sim por sua cidade, para manter os ideais e a cultura de sua comunidade, mas também vai por si mesmo, pela qualidade de vida que tem na cidade, pelos benefícios que possui. Há uma justa medida. O altruísta também quer que seus vizinhos desfrutem dos benefícios da pólis, ajudando no que for possível, sem necessariamente se sacrificar. Rand continua destilando absurdos:
“(…) significa que o altruísmo não permite conceito algum sobre um homem que se auto-respeita e é independente economicamente – um homem que sustenta sua vida através de seu próprio esforço e nem se sacrifica pelos outros nem sacrifica os outros por si“. (RAND, 1991, p. 27)
Com esse erro metodológico, toda a argumentação de Rand fica comprometida. Não obstante essa falha, podemos esmiuçar mais profundamente a esfera dos conceitos.
Crítica aos conceitos
Redução conceitual
Certamente que o erro metodológico impacta toda a esfera conceitual, como vimos na confusão que Rand faz com os termos egoísmo e altruísmo. É precisamente a ausência de método que implica na nebulosidade conceitual. Em “A ética objetivista”, Rand tenta justificar a necessidade do ser humano precisar de um código de valores. De fato:
“A primeira pergunta que deve ser respondida, como uma condição prévia de qualquer tentativa para definir, para julgar ou para aceitar qualquer sistema específico de ética, é: por que o homem precisa de um código de valores?” (RAND, 1991, p. 34)
A indagação de Rand é relevante, bem como a via que escolhe para responder à pergunta. Suas conclusões, no entanto, não fecham, pois o seu objetivo geral é a demonstração do egoísmo como a doutrina a ser seguida, e esse tipo de egoísmo é simplesmente uma forçação de barra, uma definição que passa por cima de sentidos paradigmáticos. Rand é simplista ao ponto de reduzir o egoísmo ao autointeresse. De fato, há autointeresse no egoísmo, mas de forma exagerada e exclusiva, como já vimos na raiz grega. O elemento estruturante do egoísmo, no entanto, é a preocupação exclusiva consigo mesmo, não importando o que ocorra aos outros. A imagem que podemos evocar é a seguinte: por séculos uma comunidade lutou para manter sua cultura e geografia. Um dos moradores não se importa com essa história de preservação, para ele tanto faz se a comunidade morre ou não. Essa é a pessoa egoísta/idiota. Bom, isso é algo que deixamos claro, mas podemos seguir o percurso de Rand em busca de uma resposta.
Rand começa a articular sua solução com a seguinte preparação:
“Nenhum filósofo deu uma resposta racional, objetivamente demonstrável e científica à pergunta do porquê do homem precisar de um código de valores”. (RAND, 1991, p. 35)
Diante disso, Rand, a heroína, deve responder àquilo que nunca foi respondido. Antes de entrarmos em sua solução, podemos verificar se o que ela diz é verdade. Será mesmo que nenhum filósofo respondeu a essa pergunta? Vejamos o que diz Kant na “Doutrina elementar ética”, na “Metafísica dos costumes”:
“Ainda que não seja o mais importante, o primeiro dever do homem para consigo mesmo na qualidade de animal é a autoconservação em sua natureza animal. O contrário deste dever é a morte física voluntária que, por sua vez, pode ser pensada ou como total ou como meramente parcial”. (KANT, 2013, p. 263)
Essa passagem está inserida no capítulo “Dos deveres perfeitos para consigo mesmo”, ou seja, coisas que dizem respeito ao autointeresse do ser humano. O primeiro dever do homem, diz Kant, é a sua autoconservação, isto é, o homem deve preservar sua vida, cuidar de si mesmo, evitando a morte física. Essa passagem se afina com Heidegger em “Ser e tempo”, quando diz que a morte é aquilo que nos chama ao cuidado. Por que o ser humano deve se autoconservar? Para não se ferir, para evitar a dor, a morte. É algo simples e objetivo. Diante do mundo, o ser humano se vê diante de inúmeros perigos, é só na preocupação com a sua própria vida que ele pode se preservar. Ou seja, a vida é o primeiro dever do homem para Kant, a preservação da vida individual. Kant mostra a importância da independência de cada indivíduo:
“Não se tornem escravos dos homens. Não deixem seu direito ser pisoteado impunemente por outrem. Não façam nenhuma dívida para a qual não ofereçam plena garantia”. (KANT, 2013, p. 280)
Kant, com clareza, mostra que o ser humano deve se atentar para sua própria vida, evitando a dominação por parte de outros. O ser humano precisa se comprometer consigo mesmo pelo simples fato que precisa sobreviver, eis o dever primordial. Ainda assim, Kant não vai defender o egoísmo, ao contrário:
“Aquele que encontra prazer no bem-estar (salus) dos homens na medida em que os considera meramente enquanto tais, que se sente bem quando as coisas vão bem para os outros, chama-se amigo dos homens (filantropo) em geral. Aquele que se sente bem apenas quando ocorrem males aos outros chama-se inimigo da humanidade (misantropo em sentido prático). Aquele que é indiferente ao que acontece com os outros desde que com ele tudo vá bem, é um egoísta (solipsista). (…) A máxima da benevolência (o amor prático aos homens) é um dever de todos os homens, considerem-se estes dignos de amor ou não, segundo a lei ética da perfeição: ame o próximo como a você mesmo. Pois toda relação prático-moral entre homens é uma relação dos mesmos na representação da razão pura, isto é, das ações livres segundo máximas que se qualificam a uma legislação universal e que, portanto, não podem ser egoístas (ex solipsismo prodeuntes)”. (KANT, 2013, p. 296)
A citação é boa em dois sentidos: ela mostra a definição kantiana do egoísmo e mostra a benevolência como um dever de todos os homens. Kant, mais acurado com a raiz da palavra, vê o egoísmo como aquilo que prega a indiferença e o solipsismo, isto é, a vida privada como a única digna de atenção. Não devemos cair no solipsismo, pois assim como tenho ações livres, o próximo também tem. Partilhamos da razão pura, da capacidade de pensar. Quer dizer, Kant não vê qualquer contradição em sustentarmos o autointeresse e a benevolência, posto que o primeiro nada tem a ver com o egoísmo, mas com a preservação do ego (do eu).
Além de Kant, Thomas Hobbes também escreveu sobre os valores humanos. Certamente que ele não colocou a questão como Rand colocou, o do porquê o homem precisa de um código de valores, mas apontou para a força motriz que move o ser humano:
“Assinalo assim, em primeiro lugar, como tendência geral de todos os homens, um perpétuo e irrequieto desejo de poder e mais poder, que cessa apenas com a morte. E a causa disto nem sempre é que se espere um prazer mais intenso do que aquele que já se alcançou, ou que cada um não possa contentar-se com um poder moderado, mas o fato de não se poder garantir o poder e os meios para viver bem que atualmente se possuem sem adquirir mais ainda. E daqui se segue que os reis, cujo poder é maior, se esforçam por garanti-lo no interior através de leis, e no exterior através de guerras”. (HOBBES, 1997, p. 37)
O perpétuo desejo de poder do homem é o seu guia, pois só assim, diz Hobbes, ele pode garantir os meios para viver bem. Mais uma vez, portanto, a vida aparece como aquilo que orienta a busca dos seres humanos, e essa busca só é possível no acúmulo de poder. Objetivamente, o ser humano precisa se munir do necessário para sobreviver, ou é isso ou a morte. O desejo de poder é a abertura para as possibilidades, o direcionamento do que posso ou não fazer. Sou poderoso o suficiente para sobreviver, para construir coisas, para ter sucesso? A vida é o que devemos proteger, e somente com poder podemos.
É por aí que Rand vai se encaminhar. O que podemos apreciar, agora, é a resposta àquela pergunta que fizemos: nenhum filósofo respondeu à pergunta feita por Rand? Evidentemente que não. Apesar de não colocarem a pergunta à maneira de Rand, tanto Kant quanto Hobbes mostram a razão de termos valores. A escrita de Rand é pouco acurada, para não dizer que é descuidada.
Em sentido semelhante ao kantiano, Rand vai colocar a vida como um valor supremo, mas vai fazer isso para cometer um crasso erro conceitual. Vejamos na sequência:
“Um valor supremo é aquele objetivo final para o qual todos os objetivos menores são meios – ele estabelece o critério pelos todos os objetivos menores são valorados. A vida de um organismo é o seu padrão de valor: aquilo que promove sua vida é o bem, aquilo que ameaça é o mal. (…) Metafisicamente, a vida é o único fenômeno que é um fim em si mesmo: um valor ganho e mantido por um processo constante de ação”. (RAND, 1991, p. 40)
Não há novidade nisso, a não ser que, a partir daí, Rand vai começar a articular aquilo que chama “objetivismo”. Cabe indagarmos: se a vida é mantida por um processo constante de ação, como pode ser um fim em si mesmo? Uma ação é sempre de algo ou alguém. Não seria a vida o meio que possibilita a vivência? A vivência nunca é algo em si, mas um processo de uma subjetividade, de um ente que experimenta e sente. Não há vida sem vivência, e isso não quer dizer que não há vida sem subjetividade, mas sim que não há vida sem movimento, sem um processo. A vida é o meio que possibilita o movimento e, nos mexendo, alcançamos um fim: a sobrevivência. Quem fica parado não sobrevive. A noção de que a vida é um fim em si mesmo é um tanto problemática. Essa análise será fundamental para compreendermos o erro conceitual de Rand.
Como podemos definir o objetivismo de Rand, quais são os seus critérios? Somente ela pode nos responder:
“A ética é uma necessidade objetiva e metafísica da sobrevivência do homem (…) O critério de valor da ética objetivista – o critério pelo qual alguém julga o que é bem ou mal – é a vida do homem, ou: aquilo que é exigido para a sobrevivência do homem enquanto homem”. (RAND, 1991, p. 51-52)
Partindo da ideia de que devemos sobreviver acima de tudo, colocando esse dever como necessidade objetiva, Rand estrutura o seu objetivismo. Isto é, precisamos de valores para sobreviver, do contrário, não fazemos o necessário para a nossa sobrevivência. Essa tese, porém, é insuficiente para a estruturação de um objetivismo. Por qual motivo? Rand se apega demais ao fenômeno, à vida. Tudo bem, realmente precisamos de valores para nos mantermos, saber o que é bom para a vida e o que é ruim. Nosso organismo nos impele à sobrevivência, e devemos buscar os meios no mundo. Essa busca é sempre subjetiva, cada um traça o seu caminho, a sua vida. A ética surge sim de uma necessidade objetiva, mas o como devemos satisfazer as necessidades é algo de subjetivo, que compete à vivência. Nesse sentido, o objetivismo possui um problema de escopo: não se pode generalizar a ética como objetiva só pelo fato de que a vida nos impele ao que é bom ou ruim para a sua manutenção, posto que a nossa jornada é sempre subjetiva. Apesar da ética iniciar na necessidade objetiva, ela não se sustenta somente nela, pois o nosso interesse se expande para além da sobrevivência, o nosso desejo por poder nos mostra outras vias – vivências subjetivas.
Esse apontamento não derruba o fato de haver sim uma necessidade objetiva, mas mostra que uma ética nunca é somente objetiva, mas também subjetiva. Isso se dá pelo seguinte fato: somos organismos, produtos da evolução, temos necessidades internas que só podem ser satisfeitas no externo, no mundo. Apesar de sermos guiados por nosso organismo, somos também guiados pelo mundo, escolhemos a partir dele, evoluímos nele. Há uma interioridade e uma exterioridade, uma subjetividade e uma objetividade. Vivemos nessa correlação, nessa dependência metafísica. Tire o mundo e não verá indivíduo, tire o indivíduo e não verá vivências humanas no mundo. Uma ética objetivista simplesmente ignora a subjetividade das vivências, colocando-as como objetivas, o que é um contrassenso. Não posso saber o que meu vizinho pensa, a não ser que ele comunique, ponha na linguagem. O processo de colocar algo na linguagem é sempre subjetivo, pois primeiro organizamos internamente a nossa fala e então falamos. O fato de que posso me comunicar pressupõe que tenho ao menos dois indivíduos competentes com uma língua, e essa competência é sempre um aprendizado subjetivo – cada um aprende de um jeito, em um ritmo próprio. Rand, mais uma vez, reduz toda a linguagem e todo o aprendizado à objetividade, o que é um absurdo, como já vimos.
Com o objetivismo, Rand busca mostrar a “virtude do egoísmo”, isto é, que a preocupação com os próprios interesses deve ser o princípio norteador dos indivíduos, posto que a vida cobra sempre um esforço individual de cada um para que possa haver sobrevivência. Como vimos, porém, isso nada tem a ver com egoísmo, apenas com autointeresse. Não há virtude no egoísmo, mas sim no autointeresse. Rand faz uma confusão com os dois termos, visto que não faz qualquer exercício hermenêutico. Se retiramos a justificativa afoita sobre o egoísmo e o objetivismo, o que nos resta? O autointeresse. O pensamento de Rand se torna, basicamente, uma coleção de frases de efeito: “cuide de você mesmo”, “ponha-se em primeiro lugar”, “seja um vencedor”, “tenha amor próprio”. Infelizmente é o que acontece, pelo fato de que Rand simplesmente não dialoga com a tradição, não faz uma sistemática.
Partamos para a última redução: o culto exacerbado da racionalidade. Vejamos o que ela diz:
“A virtude da Racionalidade significa o reconhecimento e aceitação da razão como a nossa única fonte de conhecimento, nosso único juízo de valores e nosso único guia de ação. Significa nosso total comprometimento para com um estado de atenção pleno e consciente, com a manutenção de um foco mental completo em todas as questões, em todas as escolhas, em todas as nossas horas de vigília. (…) Significa a rejeição de toda e qualquer forma de misticismo, isto é, qualquer apelação a alguma fonte de conhecimento não-sensorial, não-racional, não-definível, sobrenatural. Significa um compromisso com a razão, não em momentos esporádicos, em questões selecionadas, ou em emergências especiais, mas como uma filosofia de vida permanente”. (RAND, 1991, p. 57-58)
Rand reduz nossa fonte de conhecimento à racionalidade, não há conhecimento herdado, memória muscular, intuição, instinto. Mas isso não é o pior, ela simplesmente nos convoca para um foco mental completo, “em todas as nossas horas de vigília”. Não é permitido ao ser humano o esquecimento, o descanso, e nem também a crença em algo sobrenatural.
“Pensar não é uma função automática, em cada situação ou momento de sua vida, o homem é livre para pensar ou evitar esse esforço. (…) Psicologicamente, a escolha de “pensar ou não” é a escolha de “focalizar ou não”. Existencialmente, a escolha de “focalizar ou não” é a escolha de “ser consciente ou não”. Metafisicamente, a escolha de “ser consciente ou não” é a escolha de vida ou morte”. (RAND, 1991, p. 47-48)
Caso desfoque de suas necessidades, você escolhe a morte. Esse compromisso deve ser “permanente” e “em todas as nossas horas de vigília”, como diz Rand. É simplesmente um autoritarismo da racionalidade, uma ditadura. Desfocar a sua atenção é escolher a morte. Há ainda algo pior: Rand diz que “o homem é livre para pensar ou evitar esse esforço”, como se não existissem sensações, tal como o medo, que simplesmente sobrevêm ao pensamento. Nesse caso, não há liberdade para pensar ou evitar, as imagens simplesmente dominam o pensamento, podendo causar sérios distúrbios. Não obstante as falhas argumentativas de Rand, ela ainda convoca todos a serem soldados do pensamento, vigilantes a todo momento. Nessas horas, o cuidado de um Santo Agostinho ou de um Walter Benjamin fazem muita falta, pois ambos tratam das lacunas da racionalidade, do esquecimento, da memória involuntária. Infelizmente, o pensamento de Rand se parece muito mais com “coaching” do que filosofia.
REFERÊNCIAS:
HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Abril Cultural, 1997.
KANT, Immanuel. Metafísica dos costumes. Petrópolis: Editora Vozes, 2013.
RAND, Ayn. A virtude do egoísmo. São Paulo: Editora Ortiz, 1991.